Fake News Memórias de mercenários

Leonardo Cavalcanti

A partir de relatos de três produtores de fake news, o Correio revela os detalhes da montagem das notícias falsas. Especializados em tecnologia e marketing político, esses homens, que chegam a ganhar mais de R$ 500 mil por candidato em períodos eleitorais, têm em comum a capacidade de não deixar rastros.

Com a garantia de anonimato, eles concordaram em contar segredos da guerra na rede — ou pelo menos parte deles. Um dos contatos foi feito em Brasília durante quase vinte horas, divididas em cinco conversas, o outro, numa cidade de Goiás. Um terceiro confirmou informações a partir de contatos telefônicos, mas preferiu evitar maiores encontros.

Ao longo da reportagem, eles serão chamados de mercenários e identificados a partir de letras (das primeiras letras de Fake News) e números. Todos rechaçam a alcunha, mais relacionada a combatentes que trabalham apenas por interesse financeiro.

Preferem ser associados a guerrilheiros, algo referente à luta ideológica. É a primeira das mentiras, num terreno virtual minado, em que os Estados parecem incapazes de reagir e desarmar os explosivos. Como se verá, não é o único problema das autoridades.

O Correio também conversou com mais de 30 investigadores, policiais, marqueteiros, acadêmicos e políticos sobre o poder e a extensão das fake news nas eleições. Por Skype, entrevistou o escritor inglês Misha Glenny, autor de Mercado sombrio — o cibercrime e você eMcMáfia — crime sem fronteiras, ambos editados no Brasil pela Companhia das Letras.

Os dois livros de Glenny detalham como criminosos especializados se aproveitam da rede de computadores para enganar pessoas comuns. Os métodos usados, como o anonimato e a técnica de apagar rastros, são parecidos com os da produção das fake news, numa guerra cada vez mais cara à democracia, em que a verdade é a primeira a desaparecer.

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Os recrutas

No minúsculo quarto de hotel da cidade de quase 100 mil habitantes na Argentina, fronteira com o Uruguai, o mercenário FN001 recebe a última chamada telefônica vinda de São Paulo. Depois da viagem de quase 2.000km, alternando trechos de avião e de ônibus, ele finalmente vai encontrar o homem que será o responsável pelos disparos de e-mails contendo notícias falsas contra um candidato a presidente do Brasil.

A primeira tarefa, ao abandonar a habitación e caminhar até uma sala comercial próxima dali, será testar a capacidade do contato local em enviar um lote de mensagens inverídicas para um milhão de e-mails. Os dois desconhecidos, com desconfianças mútuas, conseguem se entender a partir de um portunhol canhestro. O argentino contactado desde a capital paulista por um colega de trabalho do mercenário mostra eficiência na missão.

O que está em jogo é o tempo dos disparos das mensagens. Tal qual uma metralhadora, o equipamento do gringo é capaz de descarregar as notícias no lote de um milhão de e-mails entregues no pendrive. E, assim, o argentino é recrutado para um período de três meses, que, em terras brasileiras, corresponde ao da campanha eleitoral. Com um último aperto de mãos, restava a FN001 pegar o primeiro ônibus de volta ao aeroporto mais próximo e retornar ao bunker das fake news. Era agosto de 2010.

Dias antes, o mercenário estava no escritório da empresa de marketing que o havia contratado para fazer a guerrilha virtual. Ao redor da mesa, 18 integrantes de uma lista de cortes feita pelo Departamento de Recursos Humanos. O grupo era formado pelos mais irresponsáveis, o pessoal que não cumpria prazos e quase sempre estava atrasado para as reuniões.

Tenho uma notícia. Vocês estão demitidos.

Antes mesmo do desânimo geral, a proposta: “Posso recontratá-los caso algum de vocês queira trabalhar com contrainformação”. Sem saber ainda o que aquilo significava, os 18, mesmo apreensivos, toparam o trabalho e assinaram um termo de confidencialidade, que, na prática, não valia de nada, mas simbolizava o caráter sigiloso do trabalho a ser feito a partir dali.

É preciso ter confiança na equipe, pois nesse negócio não se trabalha com freiras. O cara pode não ter a dimensão do estrago que pode causar na eleição, mas sabe que está fazendo algo delicado, suspeito.

Acomodado na cadeira espaçosa de uma cafeteria de Brasília, há duas semanas, FN001 continuou: “É preciso ser leal, pelo menos até os rastros serem apagados”. Os mercenários mais qualificados e mais bem pagos do país — aqui, falamos de, no máximo, 10 pessoas — têm alto conhecimento de informática, comunicação e, até mesmo, de psicologia. Mesmo que, neste último caso, algumas lições se misturem com exemplos rasteiros nas palavras de FN001.

O produtor de fake news não busca que uma notícia falsa se transforme em verdadeira. Ele quer apenas legitimar a dúvida.

Segundo a filosofia de botequim de FN001, o problema da pessoa não é saber se o companheiro é infiel. “Se a pessoa sabe, ou aceita ou acaba o casamento, simples. A aflição está na dúvida.”

A dúvida explica a razão de as fake news não atingirem os militantes fiéis de determinados candidatos. Eles já conhecem o político, o apoiam a partir de pesos e contrapesos bem definidos, algo como, “ele tem lá os seus pecados, mas, ainda assim, é melhor do que os adversários”. Vide o exemplo mais recente, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. A força das fake news foi mais evidente nos swing states, aquelas regiões sem predominância democrata ou republicana.

“Foi em cima dos eleitores desses estados que se concentrou essa tentativa bem-sucedida de manipulação”, disse-me Silvio Meira, professor do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Escola de Direito do Rio da FGV. “A Rússia influiu na eleição americana, contaminando opiniões, talvez de milhões de eleitores, nos locais onde a disputa poderia ser virada”, afirmou Meira, um homem de 62 anos, que é considerado um dos pesquisadores mais influentes na área de tecnologia da informação e um dos pensadores mais atuantes no debate sobre democracia.

“Vivemos um dos pedaços mais complicados da história da humanidade, em que as pessoas não entendem as tecnologias que usam.” Dúvida e confusão, duas palavras do glossário das fake news que parecem conviver muito bem, obrigado, com outras, como algoritmo, filtro bolha, bots, hoax e clusters.

A dúvida pode ser instalada, por exemplo, a partir da alteração do domínio do e-mail de um religioso de alta patente e com capacidade para influenciar rebanhos. Ao manter o nome do usuário desse cidadão, FN001 conseguiu produzir estragos na campanha adversária. Para ampliar os disparos, foi preciso apenas acionar o contato daquela cidade de 100 mil habitantes na fronteira da Argentina com o Uruguai, descrito no início deste texto. Com os disparos feitos a distância, os fiéis da igreja seguiram à risca a recomendação do texto e republicaram a notícia, que pegou como fogo em capim seco.

Uma dessas fogueiras das fakes news está justamente na religião. Em setembro do ano passado, o papa Francisco pediu que a Igreja Católica fizesse uma reflexão profunda sobre as notícias falsas. Fake news serão tema do 52º Dia das Comunicações Sociais, celebrado em 18 de maio. “A verdade vos tornará livres”, escreveu Jorge Mario Bergoglio na conta do Twitter. Segundo a Santa Sé, a Igreja precisa oferecer uma contribuição sobre o tema, propondo uma reflexão das consequências da desinformação e estimular um jornalismo profissional, que “busca a verdade”.

Escolhi como tema para o Dia da Comunicação 2018: “A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32). Notícias falsas e jornalismo de paz.

Os observadores do Vaticano pareciam ainda impactados pelos resultados das eleições norte-americanas que elegeram Donald Trump. Uma das mentiras espalhadas na campanha era de que o papa Francisco teria apoiado o republicano.

Aqui, no Brasil, anos antes, em outubro de 2010, a três dias da eleição presidencial, Bento XVI condenou o aborto e pediu que bispos brasileiros orientassem os fiéis politicamente — no que parecia uma clara interferência. Não citava Dilma Rousseff diretamente, mas tal associação com a candidata acabou sendo feita. A petista, na época, reagiu e se disse contra o aborto. “Acho que o papa não tem nada a ver com isso. Aqui ocorreu uma outra coisa, ocorreu uma campanha que não ocorreu à luz do dia. Quem fez a campanha não se identificou, não mostrou sua cara. Foi uma campanha de difamações, de calúnias e algumas delas ao arrepio da lei”, disse Dilma. Na época, a expressão fake news ainda não era popularizada.

A batalha contra as fake news começa no próprio conceito da expressão. Nessa guerra, poucos se entendem, como numa grande babel moderna, que apenas oferece vantagens aos produtores de notícias falsas. É o que explica o segundo mercenário, FN002, localizado numa cidade de porte médio em Goiás:

As pessoas querem replicar as histórias, mesmo sem saber exatamente do que se trata. É algo feito por instinto, querem ser os primeiros a levarem uma informação qualquer para um grupo.

Em pé, próximo à janela do escritório no sexto andar de um prédio comercial, o mercenário nº 2, de gestos rápidos, quase nervosos, fala sem parar. E mostra, na tela do computador, uma série de trabalhos como se quisesse confirmar as palavras. O custo de se produzir informação falsa é a dúvida constante dos interlocutores no fato e no autor. Existem histórias sem finais felizes.

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A arte da mentira

Existem histórias sem mocinhos. Enquanto os investigadores têm dificuldades em identificar autores de fake news, os mercenários profissionais formam um pequeno grupo especializado em comunicação e tecnologia e, mesmo atuando em times diferentes, conseguem se reconhecer.

Se eu não conseguir achar o cara que fez a guerrilha contra o meu cliente, eu sei quem ele é.

Depois de rir da própria frase, FN002 começa a detalhar o trabalho. Ele tem duas identidades, dois escritórios, dois tipos de clientes. Às vezes tudo se mistura, principalmente quando os contratantes são políticos. Uma parte do serviço é visível, com registros, notas fiscais e funcionários fichados. A outra é secreta, sem qualquer tipo de rastro. Na lista clandestina, que tem em média 18 pessoas, há ex-jornalistas especializados em investigações, técnicos em informática, atores, dubladores — capazes de imitar 30 vozes de políticos e celebridades — e policiais militares.

Não é qualquer policial, tem de ser um oficial para garantir a segurança do bunker. Caso ocorra alguma denúncia, ele precisa matar a investigação no início.

FN002 detalha a contratação de um oficial da Polícia Militar. “Ninguém faz denúncia sobre um escritório que produz fake news, os adversários tentam associar o meu time ao tráfico de drogas ou desmanches, por exemplo”, afirma o mercenário. “Se a polícia der uma batida aqui, o meu oficial toma a frente do caso e afasta qualquer possibilidade de levarem computadores, que poderiam me associar a algum político.”

Entre as “maldades” produzidas por FN002 estão as sátiras, disseminadas no WhatsApp e Facebook. Para além da controvérsia sobre como enquadrar as piadas — acadêmicos divergem se elas são ou não fake news —, FN002 utiliza a mesma rede anônima das notícias falsas.

As tarefas na produção e divulgação das notícias vão das mais simples às mais complexas — e sempre têm uma certa dose de provocações, como o uso de CPFs do candidato adversário em determinada operação. Depois de montar a estrutura da fake news, seja em texto seja em vídeo, e jogar na rede a partir de páginas disponíveis gratuitamente na internet, a missão será impulsioná-la nas redes sociais e garantir maior visualização.

Assim, é preciso comprar um cartão de débito recarregável — “sem análises de crédito ou qualquer burocracia”, como diz uma propaganda na internet — , que pode ser adquirido em lojas de departamento por R$ 15. Numa lan house da periferia da cidade, mais distante possível do bunker, o produtor de fake news precisa habilitar e, na sequência, gerar um boleto para pagamento do cartão em dólares. E aqui vem a tal piada interna, com uso do CPF.

Se o adversário for buscar as pistas da maldade, vai chegar a ele mesmo.

As ações descritas por FN002 são confirmadas pelos outros mercenários ouvidos pelo Correio. A partir daqui, é possível fazer depósitos de US$ 500 por dia para impulsionar as notícias em redes sociais. Para tornar ainda mais complexa a identificação, um terceiro mercenário, FN003, prefere comprar cartões pré-pagos em outros países. “Já fiz encomendas para uma rede de guerrilheiros no Canadá e em países europeus”, disse-me ele, a partir de uma conversa por WhatsApp. “É arriscado comprar esses cartões no Brasil, na minha opinião.”

As formas de os mercenários mascararem as páginas com os links de sites ontendo as notícias falsas são as mesmas usadas por golpistas, fraudadores e ladrões há pelo menos 10 anos na web, tudo a partir da hospedagem em servidores no exterior. A confecção das páginas é feita em computadores comprados de segunda mão que serão descartados para evitar rastros logo na largada, a partir do “endereço MAC”, a identificação dos aparelhos.

Para terminar de apagar os rastros, falta camuflar o protocolo da internet (IP), responsável por enviar as informações que trafegam pela rede, tal qual as cartas postadas. A identificação dos IPs pode desmascarar criminosos e, por isso, um dos trabalhos dos mercenários de fake news, como o de golpistas da rede, é alterar os protocolos com os serviços de proxy. Neles, há duas vantagens para o criminoso em relação aos investigadores, a transmissão de dados criptografados e as mudanças contínuas de IP, que pode estar em qualquer parte do mundo.

De volta ao escritório, entre uma xícara de café expresso e uma lata prateada de energético, FN002, mostra uma pilha de documentos referentes a um processo judicial em que ele não aparece em nenhum momento. “Foi aberto contra um cliente, um candidato. O adversário se sentiu prejudicado, ninguém foi encontrado para responder, e o juiz arquivou, criticando o político que ajuizou a ação”, diverte-se o mercenário.

A maioria dos policiais locais não têm a ideia do que procurar nos computadores.

FN002 acredita — e aqui demonstra um certo alívio — que há um despreparo da polícia brasileira nas investigações contra as fake news. “Mesmo durante uma batida, imagine se os policiais vão se importar com uma série de máquinas, eles não têm a mínima ideia do que está sendo feito no escritório.” De mais a mais, o mercenário de número 2 conta que a maior parte dos trabalhos é arquivada em serviços de nuvens, os servidores remotos, que complicam ainda mais o trabalho de investigadores de cibercrimes.

A mais de 9.000km de distância, em Londres, o escritor inglês Misha Glenny, 59 anos, tem uma opinião parecida com a FN002 sobre a polícia brasileira. Autor de Mercado Sombrio, editado no Brasil pela Companhia das Letras, uma espécie bíblia sobre os ataques perpetrados na internet, Glenny morou na Rocinha para escrever O dono do morro e conhece bem tanto os crimes que ocorrem no mundo virtual e fora dele. Além disso, teve acesso a investigadores qualificados da Polícia Federal que combatem golpes na internet na Polícia Federal.

O país tem muitos usuários de internet competentes, muitos bons engenheiros de softwares, mas as estruturas governamentais do país são subdesenvolvidas.

Glenny, 59 anos, é cético em relação à capacidade da sociedade civil organizada em combater as fakes news, levando a bola de volta para as autoridades. O problema é que há um bate-cabeça no debate sobre fake news, onde qualquer ação mais efetiva do Estado pode ser confundida como censura. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenador do Laboratório sobre Imagem e Cibercultura (Labic), Fábio Malini é um dos maiores pesquisadores da rede brasileira e se diz cético sobre os efeitos das investigações e das alterações da legislação para conter as fake news.

A força-tarefa para combater as fake news é irrelevante.

Malini faz referência ao grupo criado por Luiz Fux, ministro do Supremo, com representantes da Polícia Federal e do Ministério Público. Para o professor, a cultura das notícias falsas se desenvolve cada vez mais nas redes sociais privadas, como o WhatsApp, uma definição própria do acadêmico — alguns especialistas veem o aplicativo como um serviço de troca instantânea de mensagens, mas todos concordam na dificuldade de apurar crimes disseminados dentro dos grupos.

Hoje, há apenas três formas de punir os autores de fake news, todas com mais de 30 anos de vigência. Primeiro, o Código Eleitoral, que trata da divulgação de informações inverídicas, é da década de 1960, sem qualquer referência à internet. O Código Penal, que prevê a injúria, calúnia e difamação, é dos anos 1940 e poderia ser usado em última hipótese. Por fim, a Lei de Segurança Nacional, de 1980, que estabelece punições por difundir boatos que causem pânico.

No sétimo andar do Máscara Negra, como é conhecido entre jornalistas o edifício-sede da Polícia Federal, em Brasília, Eugênio Ricas, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado da corporação concorda que o país não está preparado para as fake news nas eleições. “Só estaríamos preparados se fosse possível responder ao crime em poucos dias, sem permitir que as notícias falsas interferissem na campanha”, disse o delegado, que, aos 42 anos, se transformou numa espécie de porta-voz da força-tarefa.

Ricas afirma que a legislação é fraca o que dificulta ainda mais investigações complexas para se chegar aos autores, que usam servidores de outros países e a deep web. O policial acredita que o objetivo da força-tarefa é criar protocolo de atuação dos investigadores, da PF e do MP, e dos magistrados. O segundo passo seria propor minuta de alteração legislativa. O delegado acredita saber qual o perfil dos produtores de fake news: “São jovens com habilidade com internet, uma parte faz de brincadeira e outra para ganhar dinheiro. E nesse meio tem os ideológicos, da direita e da esquerda”. O leque de suspeitos é amplo. Existem histórias sem mocinhos.


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Fonte: Correio Braziliense

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