Jurista do CEUB comenta decisão do STF que autoriza a opção por regime de bens diferente do obrigatório previsto no Código Civil
Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal entendeu, por unanimidade, que a separação de bens em casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas com mais de 70 anos pode ser alterada conforme a vontade das partes.
Brasileiros desta faixa etária casados ou em união estável podem alterar o regime de bens a partir de autorização judicial ou escritura pública. Luciana Musse, professora de Direito no Centro Universitário de Brasília (CEUB), detalha as alterações no Código Civil, comentando os impactos sociais e legais da medida.
Confira a entrevista, na íntegra, da especialista do CEUB:
Quais são os principais pontos destacados pelo STF na decisão sobre a possibilidade de alteração do regime obrigatório de separação de bens envolvendo pessoas com mais de 70 anos?
LM: O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a exigência de separação de bens nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas maiores de 70 anos viola princípios constitucionais, especialmente o da dignidade humana. O dispositivo legal questionado (art. 1.641, II, do Código Civil) impede que indivíduos conscientes de suas escolhas decidam sobre o destino de seus bens e desvaloriza as pessoas idosas, tratando-as como meros instrumentos para garantir os interesses dos herdeiros.
Segundo entendimento da Suprema Corte, baseado no Recurso Extraordinário (RE) 878.694, os casais em união estável têm direito à aplicação das mesmas regras para divisão de herança que os casados. Dessa forma, o regime da separação de bens não deve ser obrigatório para pessoas maiores de 70 anos. Assim, nos casos de casamentos e uniões estáveis com pessoas dessa faixa etária, o regime de separação de bens pode ser afastado se ambos os parceiros estiverem de acordo. Do contrário, a regra da separação de bens permanece vigente.
Vale ressaltar que o STF não eliminou o regime da separação obrigatória, apenas flexibilizou sua aplicação de acordo com a vontade do casal. Além disso, reconheceu que o tema possui repercussão geral, devendo a decisão ser aplicada a todos os processos semelhantes em andamento no Judiciário brasileiro.
O que motivou o STF a considerar que a obrigatoriedade da separação de bens, prevista no Código Civil, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas?
LM: O Tribunal entendeu – numa interpretação conforme a Constituição – que esse dispositivo é uma espécie de discriminação contra a pessoa idosa em razão, única e exclusiva, da sua idade, o que vem sendo chamado de etarismo. Essa atitude transmitiria uma mensagem preconceituosa de que a pessoa com 70 anos ou mais que quer iniciar uma (nova) família – se casando ou estabelecendo união estável – é incapaz de perceber se está sendo vítima de um eventual golpe e, portanto, de tomar decisões nesse campo da vida, garantindo a proteção do seu patrimônio.
Por envolver uma incapacidade presumida, essa desqualificação da pessoa idosa contrasta com normas constitucionais, que não exigem idade máxima para o indivíduo ser deputado federal, senador ou presidente da república, por exemplo e outros dispositivos legais do nosso ordenamento. Inclusive do próprio código civil, que reconhecem a capacidade e a autodeterminação da pessoa com 70 anos ou mais para praticar outros atos, como doar, comprar e vender bens ou administrar seus negócios.
Há, todavia, juristas que entendem que essa regra objetiva garantir uma forma de proteção ao patrimônio da pessoa idosa, portanto não seria expressão de preconceito e nem promoveria discriminação desse grupo.
Qual é o procedimento necessário para afastar a obrigatoriedade do regime de separação de bens para casais com mais de 70 anos? Como a manifestação desse desejo deve ser formalizada?
LM: Desde 02 de fevereiro de 2024, os casais que ainda não se casaram ou iniciaram uma união estável podem registrar o regime de bens de sua escolha em cartório, por escritura pública de pacto antenupcial ou de convivência. Importante destacar que cabe ao tabelião verificar e atestar se essas pessoas com 70 anos ou mais tem [ou não] capacidade para escolher outro regime de bens diferente da separação obrigatória de bens, o que, em virtude da força de fé pública, traz maior segurança jurídica à autodeterminação das pessoas idosas e ao ato.
Em relação aos casais já casados ou em união estável acima dos 70 anos, como a decisão do STF permite a alteração do regime de bens, e quais são os requisitos para tal modificação?
LM: Se a partir da decisão do STF, o casal, de comum acordo, quiser alterar o regime de bens, adotando, por exemplo, a separação total de bens convencional, a comunhão universal ou parcial de bens, poderá fazê-lo por meio de escritura pública, no caso de união estável, ou apresentando o pedido junto ao Poder Judiciário, por meio do procedimento legal de alteração de regime de bens (art. 1.639, § 2º, CC; art. 734 do CPC), em se tratando de pessoas casadas.