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    Efeitos retroativos da mudança de jurisprudência em matéria tributária

    Mirian Teresa Pascon*

     

    Recentes julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede do denominado regime de precedentes (que traz o efeito vinculante às decisões), alertam para o perigo da relativização da segurança jurídica que vem se instalando em matéria tributária.

     

    No STJ, os julgamentos relativos à legalidade do ICMS base TUSD/TUST(Tema 986), bem como da limitação da base de cálculo das contribuições previdenciárias do Sistema S (Tema 1079) representaram mudança de entendimento jurisprudencial pacificado daquela Corte, também chamado overruling. Nestas situações, o sistema normativo do regime de precedentes prevê a possibilidade de modulação dos efeitos do julgamento no tempo, em atenção ao sobreprincípio da segurança jurídica, vale dizer, a fim de que sejam salvaguardados diretos e relações jurídicas constituídas com fundamento na jurisprudência anterior, possibilitando a aplicação dos efeitos somente de forma prospectiva. Neste cenário, é fato que tem sido observada tendência do STJ e STF em assegurar a modulação de efeitos nestes casos.

     

    Com vistas a essa especial circunstância normativa, reputou-se salutar que o STJ tenha modulado os efeitos de ambos os julgamentos, em reconhecimento à inegável situação fática de que, tratando os casos de efetivo overruling, poderia se configurar a quebra do princípio da proteção da confiança, através da qual, jurisdicionados, legitimados por decisões judiciais expedidas a seu favor, beneficiavam-se de exclusão de incidências tributárias.

     

    Por outro lado, os debates realizados por ocasião do julgamento destas modulações do STJ denotam preocupante relativização da segurança jurídica, ressaltando-se que, em ambos, a modulação foi aprovada por apertada votação dos Ministro da 1ª Seção. Em opinião contrária, entre outros fundamentos, arguiu-se que os contribuintes que possuíam decisões prolatadas a seu favor, em verdade, incorreriam em arriscadas apostas, sabedores de que o resultado poderia lhes ser desfavorável. Também se defendeu que a modulação promoveria verdadeira judicialização de teses, à medida em que os contribuintes “buscariam se beneficiar, mediante provimentos judiciais provisórios”, de teses de futura e incerta solução de continuidade nos tribunais superiores. Ainda chamou atenção a divergência de critérios para se estabelecer o marco inicial da modulação, que no caso do Tema 986, foi fixado na data do primeiro julgamento em sentido contrário no STJ, enquanto que para o Tema 1079, demarcou-se com o início do próprio julgamento vinculante.

     

    Já no caso do emblemático julgamento, pelo STF, dos Temas de repercussão geral 881 e 885, a relativização da segurança jurídica ultrapassou os limites da denominada coisa julgada, fixando-se a tese de que, eventual ulterior entendimento prolatado em sede do regime de precedentes traria, automaticamente, a interrupção da eficácia de decisões anteriores, ainda que prolatadas em ação individual transitada em julgado.

     

    O caso, que muito vem repercutindo desde fevereiro de 2023, quando efetivamente fixada a tese, igualmente, teve recente desfecho de apertada votação por ocasião do julgamento da modulação dos efeitos. O paradigma afetado ao julgamento, de certo, em muito contribuiu para a profunda distorção da qual, ao final, resultou em não modulação. Na análise do caso, de muito antiga ocorrência nas instâncias inferiores, deixou de ser realizado o necessário corte metodológico para a fixação das teses no tempo, que passarão a ser aplicadas, doravante, em todos os casos, para o bem, e para o mal.

     

    Tratou-se de processo relativo à malsinada discussão da inconstitucionalidade da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, por ocasião de sua instituição, quando da publicação de sua regra-matriz, a Lei 7.689/88. À época, contribuintes entenderam por vício formal da norma (lei ordinária a tratar de matéria de lei complementar), no que foram respaldados por instâncias do Poder Judiciário. No caso analisado, a incidência, que teve início no longínquio ano de 1989, foi afastada para o contribuinte em julgamento favorável próprio, com trânsito em julgado, ainda no ano de 1.992. Todavia, no decorrer daquela década, o STF passou a apreciar a matéria, contudo, ainda em sede de regime difuso de constitucionalidade, já assinalando entendimento contrário. Embora referidas decisões ainda não tivessem caráter vinculante, a contribuinte, no ano de 2001, impetrou Mandado de Segurança, visando proteger-se possível autuação fiscal, tendo com fundamento, não somente o trânsito em julgado em seu favor, mas notadamente, a ausência de ajuizamento de ação rescisória da primeira sentença pela União Federal.

     

    Vale lembrar que no ano de 2007, quinze anos após o trânsito em julgado em favor do contribuinte, o STF veio a apreciar o tema, agora em sede de denominado controle concentrado (em caráter vinculante, portanto), declarando a constitucionalidade de incidência, até hoje em vigor. A decisão foi prolatada na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade – ADI n.15.

     

    E foi esta segunda ação do contribuinte que veio a ser afetada no STF, agora em caráter de repercussão geral. Analisando-se o caso sobre este prisma temporal, pareceu evidente ao STF que, uma vez declarada a constitucionalidade da CSLL desde 2007, não poderia o contribuinte, ainda que com base em decisão anterior ao julgamento da ADI, permanecer fora do alcance da incidência. Dos principais fundamentos, destacou-se que, tendo sido declarada a constitucionalidade da incidência, a exclusão de apenas alguns contribuintes do alcance da tributação seria lesivo ao direito constitucional da livre concorrência. Todavia, novamente observaram-se argumentos no sentido de que o contribuinte, sabedor, desde 2007, do julgamento da ADI n.15, estaria incorrendo em aposta, da qual a improcedência de seu pleito não somente era prevista, porém, com maior gravidade, seu prosseguimento somente se conceberia ante uma engenharia jurídica premeditada e intencional.

     

    Importante a compreensão do precípuo objeto deste julgamento, vez que, ao contrário do quanto indevidamente interpretado e noticiado, o STF não incorreu em alteração de julgamento anterior, com cobrança com efeitos retrativos ao contribuinte. Em verdade, sob certo aspecto, embora provido o RE da Fazenda Nacional, o contribuinte foi “beneficiado” pela decisão, à medida em que o entendimento da RFB era pela cobrança desde os primeiros julgamentos da constitucionalidade da CSLL (O MS apreciado fora impetrado em 2001) e não do julgamento da ADI 15, ocorrido somente em 2007.

     

    Além disto, quando da fixação da tese dos Temas 881e 885, o plenário do STF salvaguardou o requisito da anterioridade tributária (anual/trimestral) de retomada da incidência no caso de declaração de constitucionalidade do tributo, tendo como marco inicial, o próprio julgamento em controle concentrado.

     

    Como se vê, por um lado, o STF não alterou posição anterior, vez que, desde os primeiros julgamentos acerca da CSLL, posicionou-se pela sua constitucionalidade. De outro lado, contudo, neste caso em concreto, confirmou-se a retroatividade da incidência, operando efeitos a partir da ADI n.15, ensejando-se, por isso, o julgamento de modulação.

     

    Ocorre que todo esse cenário sobre o caso posto em julgamento encobriu o principal objeto da modulação, não atinente ao particular caso da cobrança da CSLL, mas voltado ao conteúdo das teses fixadas pelos Temas 881 e 885, e que dizem com a retirada da eficácia no tempo, e de forma automática, de decisão transitada em julgado em favor do contribuinte.

     

    Não por acaso, o Ministro Dias Toffoli, ao prolatar o último voto vista do julgamento, declarou tratar-se da decisão de maior impacto de toda sua trajetória de quatorze anos no STF. Isto porque, muito mais do que aparentemente apenas relativizar a coisa julgada, mediante a interrupção de sua eficácia, em verdade, tratou-se o caso de delimitação de como, quando e por quem será reconhecida a cessação os efeitos protetivos da coisa julgada. E o que se fixou pelos Temas 881 e 885 foi que a eficácia das decisões ocorre de modo sumário e automático com a ulterior declaração de constitucionalidade de norma tributária, sem que se tenha, formalmente, rescindido decisão anterior.

     

    Este o real foco, e por isso a temeridade do julgamento. Embora possa ser dito que, com acerto, o STF tenha fixado a tese de que decisões prolatas em sede de controle concentrado de constitucionalidade sobrepujem aquelas prolatadas em controle difuso, com o destaque do respeito à irretroatividade e à anterioridade, a interrupção da eficácia de decisões anteriores terá subsunção imediata para todas as decisões em sentido contrário, inclusive, as já transitadas em julgado.

     

    Exatamente pela inovação do posicionamento, Toffoli defendeu a necessidade modulação da tese fixada, não somente para que, no particular caso analisado, o contribuinte voltasse a estar sob a incidência da CSLL a partir de fevereiro de 2023 (data do julgamento de repercussão), e não em 2007, mas também para todos os casos em que já ocorrida a ulterior declaração de constitucionalidade tributária, até hoje prolatadas. E uma vez mais, prevaleceu o preocupante fundamento de que o contribuinte, nesta situação, seria apenas um apostador, e no caso, perdedor.

     

    E neste exato ponto é que fica claro ter o caso paradigma em muito contribuído para a distorção da amplitude deste inovador julgamento. Deveras, como sustentar aquele contribuinte que, sabedor da posição do STF pela constitucionalidade da CSLL desde 2007, não tenha ao menos provisionado recursos para quando, sob qualquer instrumento, fosse revogada sua sentença?

     

    A questão posta, todavia, foge à casuística. Também não se cogita de defesa imutabilidade da jurisprudência, que deve sempre refletir a dialeticidade da vida social, vez que o direito nada mais é do que o regramento voltado à proteção de determinados valores eleitos por uma sociedade, num corte de espaço e tempo.

     

    Trata-se sim, da mencionada relativização de direitos e garantias fundamentais materializados no princípio da proteção da confiança, resultado do respeito à coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, todos consagrados no texto constitucional, e que realizam o mencionado sobreprincípio da segurança.

     

    Não se pode perder de vista que as relações jurídico-tributárias são as únicas das quais advém obrigação constituída de forma unilateral. Tanto nas relações particulares, onde se materializa à vontade, quanto nas judiciais, onde se assegura o contraditório, as partes envolvidas relacionam-se por vetores isonômicos. Diferentemente, a obrigação jurídico- tributária exsurge por imposição legal. Colocado sob esse prisma, quando o contribuinte litiga contra o Estado, exerce seu legítimo direito de objetar-se à tributação sujeita a todo leque de arbitrariedades, formais ou normativas.

     

    O contribuinte é, antes de tudo, um jurisdicionado, e que somente assiste sua pretensão de litigância prosperar em razão do reconhecimento, pelo Poder Judiciário, de seu interesse de agir, ou seja, ante a real perspectiva de que sobre ele, o Estado Fiscal, possa, de fato, extrapolar sua competência de tributação. E uma vez reconhecida sua causa de pedir judicial, não se pode cogitar de mero alvitre aventureiro, mas sim, de direito legitimamente reconhecido por mandamento judicial.

     

    Da busca pelo provimento judicial tributário, assim como para qualquer matéria, constrói-se a jurisprudência, que lhe será favorável ou não. Através deste complexo sistema normativo processual, quando em sede do regime de precedentes, esse sistema vai se fechando, de modo estabilizar relações jurídicas que, em regra, serão aplicadas a todos os contribuintes litigantes colocados em mesma situação.

     

    Voltando-se novamente ao caso em análise pelo STF, que dizer do mesmo contribuinte que, ainda que sabedor da ADI 15 acerca da constitucionalidade da CSLL, igualmente, era destinatário do Tema 340, do regime e recursos repetitivos, sistema de julgamento de precedentes do STJ, e que, no ano de 2011, fixou a tese de que não é possível a cobrança da CSLL do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação, mesmo com posterior julgamento do STF em sentido contrário?

     

    E o que dizer dos julgadores de primeira e segunda instâncias que, ainda que sob entendimento contrário, seguem e seguiram obedecendo a jurisprudência firmada no regime de precedentes para estabilizar relações de jurisdicionados em seus casos concretos?

     

    A relevância da tese fixada pelos Temas 881 e 885 reside no fato de que, pelos fundamentos acolhidos, notadamente para que as decisões não restem moduladas, o STF adota posição de ser o único player do sistema judiciário. Evidentemente que, reconhecida sua magnitude de guardião da Constitucionalidade, não pode, contudo atuar abstraindo-se dos efeitos concretos gerados em razão de toda uma jurisprudência formada anteriormente, que inclusive, pode ser de sua própria lavra.

     

    Ao se admitir a alteração da coisa julgada, repita-se, de forma automática e imediata, ao contrário do que fundamentado, resulta que não somente o contribuinte, mas todo o sistema judiciário ficará exposto a um resultado futuro contingente incerto, fazendo crer que todo a atividade judicante é neutra e provisória, ainda que transitada em julgado, se e quando for o objeto de análise pelo STF, o que, por antecedente lógico, não se encontra no domínio do contribuinte, quanto menos do julgador, no momento de prolação de sua decisão.

     

    Em que pese STF e STJ estarem reconhecendo a imprescindibilidade da modulação de efeitos em casos de overruling, não podem, contudo, mitigar direitos legitimamente declarados e reconhecidos por decisões emanadas em qualquer grau de jurisdição, fazendo crer tratar-se de levianas apostas jurídicas, vez que, se de um lado os contribuintes apenas exercem seu direito de jurisdição, de outro, é o Poder Judiciário quem os reconhece e os assegura.

     

    Em verdade, se aposta existe, deve estar localizada no Poder Executivo deste país, que há décadas, tem por praxe a instituição de inconsistentes tributações, na expectativa de que, do total de contribuintes, apenas parte litigará, e desta parte, parte ainda menor sobreviverá ao extenuante desenrolar de um processo, quer por morte da pessoa (jurídica ou física), quer por custos e conveniência, e que apenas ínfima parte dos remanescentes obterá ganho de causa. E destes, se houver débitos a serem repetidos ao contribuinte, será problema orçamentário de outro governo.

     

    O julgamento da CSLL, em 2007, foi realizado na ADI 15. Por ocasião do julgamento da não modulação dos Temas 881 e 885, dados da pg. STF Corte Aberta indicavam a distribuição da ADI 7261 apenas para esta classe processual. Foram mais de quatrocentos atos normativos, por ano, tendo sua constitucionalidade questionada no STF, repita-se, apenas para esta classe processual. E toda essa efusão normativa emana do Estado, não dos jurisdicionados.

     

    O STJ e STF precisam recobrar a posição de produtores máximos, mas também receptores de sua própria fonte jurisprudencial, em especial, entre as próprias Cortes, pois ambas guardiãs do regime de precedentes. Todo julgamento prolatado no âmbito do regime de precedente traz como consequência objetivar relações jurídicas que anteriormente, possuíam caráter subjetivo, e o fazem de maneira retroativa e prospectiva. Subestimar os efeitos desta produção, relativizando impactos que são causados em primados constitucionalmente assegurados, não afastará a litigância, ao contrário, apenas acarretará maior instabilidade às relações jurídicas que, entre Estado e contribuintes, já nascem não isonômicas.

     

    Nas muito bem colocadas palavras do Ministro Dias Tófolli, ao defender a modulação dos efeitos dos Temas 881 e 885, lembrando pronunciamento do então Ministro da Fazenda Pedro Malan: No Brasil, até o passado é incerto. Espera-se que nossos Tribunais Superiores estejam atentos aos mecanismos de como essa doença se espalha em todos os âmbitos, para que a casuística não esvazie todo um sistema de julgamento prescrito por nosso atual regime de precedentes, criado para estabilização dos conflitos judiciais, e não o contrário.

     

    *Mirian Teresa Pascon é Coordenadora do Departamento Jurídico da Elebece Consultoria Tributária

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