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“É um trabalho que me completou como ser humano”. É assim que Vânia Campos, de 55 anos, define o significado do Serviço de Acolhimento Familiar (SAF) na sua vida. Depois de receber, em momentos diferentes, três crianças dentro da sua casa, com idades entre um mês e três anos, ela percebe como o sonho da adoção cedeu lugar a outro propósito. “Eu acredito que com esse trabalho de família acolhedora posso ajudar mais crianças do que se eu adotasse uma só, e no momento que elas mais precisam da gente”, justifica.
Diferentemente da adoção, o acolhimento familiar é temporário. “É uma medida protetiva para as crianças e os adolescentes que, por diversos motivos, precisam estar afastados temporariamente do convívio com a família de origem por determinação judicial. É uma situação excepcional, quando esgotadas todas as possibilidades de manutenção na família de origem ou na família extensa”, explica Mariana Neris, secretária nacional de Assistência Social (SNAS) do Ministério da Cidadania.
Nesses casos, a determinação judicial pode ser para que a criança ou o adolescente fique, temporariamente, com uma família acolhedora ou em um Serviço de Acolhimento Institucional (SAI), mais conhecido como abrigo – o que ocorre na maior parte das vezes apesar do que dispõe o parágrafo 1º do artigo 34 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “A inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida”, diz o texto. A própria Constituição Federal, no artigo 227, garante às crianças e aos adolescentes o direito à convivência familiar.
“Nas situações em que o Estado precisa interferir nas relações familiares retirando a criança ou o adolescente da sua família natural ou extensa, em razão da violência, da negligência, de maus tratos, a alternativa que nós tradicionalmente encontramos é o acolhimento institucional. Sob o pretexto de proteger a criança e o adolescente dessa situação, muitas vezes o Estado acaba violando outro direito fundamental, que é justamente o da convivência familiar”, explica o juiz auxiliar da Corregedoria-Geral da Justiça do estado do Paraná, Sérgio Kreuz.
“A solução para esses casos está no acolhimento familiar, que permite que a criança, mesmo nessas situações dramáticas, possa se desenvolver, crescer e aguardar a solução jurídica dessa situação dentro de um ambiente familiar. Tendo, portanto, esse direito constitucional e fundamental assegurado mesmo na medida protetiva de acolhimento”, completa.
Dados nacionais
Apesar de ser considerado prioritário, o acolhimento familiar ainda é pouco conhecido no Brasil, o que se reflete nas baixas taxas quando comparado a outras modalidades de acolhimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) elaborou um relatório com base no Censo SUAS de 2018 e mostrou que, de todos os 5.570 municípios brasileiros, apenas 312 (5,6%) contam com o Serviço de Acolhimento Familiar.
“É necessário encontrar as famílias voluntárias, cadastrar, preparar, ter uma equipe técnica de acompanhamento e apoio. São questões que precisam ser trabalhadas para além de romper com uma cultura da institucionalização”, enumera pesquisadora e responsável pelo estudo, Enid Rocha.
Assim, dos mais de 33 mil crianças e adolescentes acolhidos no país, apenas 4% estão em acolhimento familiar. Desse total, 38% têm de zero a cinco anos, 27% de seis a 11 anos e 34% de 12 a 17 anos. “Nós sabemos que esse número ainda é muito pequeno se comparado a outros países que já desenvolvem a metodologia de acolhimento familiar, que é muito mais benéfica para o desenvolvimento infantil”, afirma a secretária Mariana Neris.
Ainda assim, a modalidade tem ganhado, aos poucos, mais espaço no Brasil. Enquanto em 2010 havia 144 serviços de acolhimento familiar, em 2018 o número subiu para 333. O número de famílias cadastradas também saltou de 791 para 1.629, enquanto a quantidade de acolhidos passou de 932 para 1.392. “Os dados do relatório do IPEA mostram que há um potencial muito grande para o avanço dos serviços de acolhimento familiar no Brasil”, defende Enid Rocha.
“Em 2010 tínhamos apenas 791 famílias cadastradas para 932 acolhidos. Era uma razão de menos de uma família para cada acolhido (0,8). Em 2018, já temos mais de uma família para cada acolhido”, compara. “Isso significa que há um cadastro, um banco de famílias aptas e que, quando necessário, elas podem receber uma criança”, acrescenta, destacando que o aumento de famílias cadastradas tem sido observado em todas as regiões brasileiras. Segundo os dados do relatório, o Sul é a região do país onde há o maior número de serviços de acolhimento em família acolhedora.
“Quando a gente pensa em quais são as dificuldades para a expansão do acolhimento em família no Brasil, temos que trabalhar primeiro uma questão cultural. O Brasil tem uma cultura de acolhimento institucional. Nós começamos assim, com as grandes instituições, aquelas que tinham escolas, postinho de saúde, onde a criança nem tinha o seu direito de ir e vir respeitado”, relembra a pesquisadora.