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    Paulo Briguet escreve carta ao refém Daniel Silveira

    Por Paulo Briguet

     “Caro Daniel Silveira, Certa vez um professor amigo teve um problema sério de saúde e foi obrigado a passar o Natal confinado em um leito hospitalar. Na ocasião, ele recebeu a visita de um padre, que lhe disse: — Não se entristeça, meu amigo! O primeiro Natal também foi muito difícil. Agradeça a Deus por estar revivendo o presépio de Belém. Ainda estamos na oitava do nascimento de Jesus Cristo, Daniel. Por isso, ainda é tempo de lhe desejar um feliz e abençoado Natal, apesar das coisas horríveis que lhe aconteceram. 

    Pense sempre, meu amigo, que a humanidade foi salva graças ao maior mal já cometido em todos os tempos — a tortura e assassinato do Filho de Deus. De modo que Deus saberá tirar um bem maior da injustiça que você está sofrendo, à qual as pessoas que ainda têm um coração de carne e sangue não estão indiferentes.

    O maior erro que as pessoas cometem quando discutem o seu caso é tratá-lo como um acontecimento trivial, um processo da Justiça semelhante a qualquer outro. Isso equivale a partir das bases erradas.

    Vamos ser claros? Você não poderia ter sido preso. A sua prisão, naquela Quarta-Feira de Cinzas, foi arbitrária, ilegal e teratológica. O ridículo instituto criado para enquadrar o seu crime de fala — o tal do “mandado de prisão em flagrante”, também conhecido como “flagrante perpétuo” — é uma aberração saída de uma cabeça calva de lógica e doente de rancor.

    Houve uma tentativa de reparar essa aberração — a graça presidencial que lhe foi concedida, conforme prevê a Constituição Federal —, mas esse perdão também morreu de morte matada, nas mãos do mesmo tribunal soviético que jurou defender a lei magna do país.

    Não quero entrar aqui nos pormenores jurídicos de sua volta à prisão. Juristas como André Marsiglia e Érica Gorga, entre muitos outros, já demonstraram o caráter escandalosamente arbitrário dessa decisão, algo que jamais aconteceu no caso de assassinos, traficantes, estupradores e pedófilos.

    Se você tivesse matado uma criança (ou simplesmente roubado a ponto de ser condenado a 400 anos de prisão, ou dilapidado a maior estatal do mundo), Daniel, jamais teria sido alvo de tanto rigor.

    Mas o seu crime de fala — o crime de pensar mal do STF, algo que o Brasil inteiro faz e eles sabem disso — é muito pior que o assassinato e a traição para essa gente.

    “Ah, o Daniel Silveira descumpriu as medidas cautelares”, disse um bajulador do regime. Dura lex sed lex. O mesmo poderia ser dito de um judeu que não cedeu lugar na calçada a um ariano em 1938. O mesmo poderia ser dito do poeta Ossip Mandelstam, que ousou escrever um epigrama satírico sobre Stálin em 1937.

    Você não foi preso, Daniel; você foi sequestrado.

    Você não está sendo punido, Daniel; você está sendo torturado De uma árvore envenenada não podem vir bons frutos; do imperador calvo, não podem vir decisões justas. Tudo está envenenado, do começo ao fim.

    Enquanto eu tiver forças na garganta e tinta em minha pena, vou repetir isso. Sou um escritor — um escritor de sete leitores, mas ainda assim um escritor — e prezo pelo sentido das palavras.  Você não é um presidiário, Daniel. Você é um refém. E um refém que representa a todos nós. A sua dor é nossa.

    Você deve ter visto que os discípulos de Herodes aprovaram uma resolução para matar inocentes no ventre das mães e o fizeram na antevéspera de Natal. 

    No dia seguinte, o imperador calvo lhe mandou de volta ao cárcere porque você teve de ir ao hospital. Não foi por acaso. O mal ama agir na hora do bem. O ódio adora estragar a festa do amor.

    Sei que a sua dor deve ser grande agora. A litíase — ou pedra no rim — é uma dor que faz a gente ajoelhar, chorar, rezar, pedir clemência. Até o juramento de Hipócrates — escrito no século V antes de Cristo — tem uma referência a essa dor, na frase “não praticarei a cirurgia de talha perineal”.

     

    Publicado originalmente  em Gazeta do Povo

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