A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, criada com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, completa hoje 13 anos desde que entrou em vigência. Desde a sua publicação, é considerada pela Organização das Nações Unidas como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Além disso, segundo dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a norma contribuiu para diminuir de cerca de 10% dos feminicídios praticados dentro de casa. Popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, a norma é uma homenagem a uma mulher submetida a violência doméstica por 23 anos, que conseguiu sobreviver a duas tentativas de feminicídio, além de diversas agressões graves, e reunir força e coragem para lutar pela condenação do seu agressor.
Nesta entrevista, a juíza de Direito Fabriziane Stellet Zapata, titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contar a Mulher do Riacho Fundo e uma das coordenadoras do Núcleo Judicial da Mulher, fala sobre a efetividade da lei e o trabalho desenvolvido pelo TJDFT.
Após 13 anos de existência, a senhora considera que a Lei Maria da Penha tem sido um instrumento efetivo de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher?
Considero a Lei Maria da Penha um instrumento efetivo no enfrentamento a este tipo de violência, sim. Sobretudo quando analisamos os números de requerimentos de medidas protetivas de urgência; as medidas protetivas deferidas pelo Poder Judiciário; as políticas de proteção realizadas com base na lei e o número de feminicídios consumados, ainda alto e indesejável, mas proporcionalmente pequeno quando comparado ao número total de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Quais os principais avanços trazidos por esta legislação?
Os principais avanços da Lei Maria da Penha consistem nas medidas protetivas de urgência e na criação dos juizados especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Antes da lei, a maioria desses casos de violência contra mulher, como as ameaças, vias de fato, lesões corporais, perturbação da tranquilidade e crimes contra honra, eram analisados no Juizado Especial Criminal sob a ótica da Lei 9.099/99, que traz em seu bojo o objetivo da conciliação. Assim, era muito difícil para uma mulher conseguir ser atendida em suas necessidades psicossociais. Também, a Lei 9.099/99 praticamente impedia a prisão em flagrante, ao passo que a Lei Maria da Penha fortaleceu a possibilidade da prisão preventiva, independentemente dos motivos gerais previstos no Código de Processo Penal, inclusive para assegurar a eficácia das medidas protetivas de urgência. A criação dos juizados especializados em violência doméstica foi outro ganho da Lei Maria da Penha, permitindo a especialização de juízes e servidores, com conhecimento sobre as causas da violência de gênero e previsão de equipe psicossocial para atender a complexidade das situações trazidas à análise. No Distrito Federal, o Tribunal de Justiça conta com 19 juizados especializados, número imensamente maior que nos demais estados brasileiros.
As medidas protetivas de urgência, inovação da lei, têm sido eficazes no enfrentamento à violência contra a mulher?
Elas têm sido bastante eficazes no enfrentamento, pois não são uma simples “folha de papel“. Pelo contrário, a medida protetiva é uma decisão judicial que determina ao ofensor o afastamento do lar, a proibição de aproximação e contato com vítima e/ou familiares, a proibição de frequentar determinados lugares, entre outras condutas, tudo sob pena de prisão preventiva. Os ofensores são intimados dessas medidas protetivas por oficial de justiça e eles sabem das consequências do seu descumprimento. Por outro lado, quando a mulher consegue sair de sua casa e procurar auxílio na delegacia de polícia ou acionar a polícia militar, que chega ao local, ela envia um uma clara mensagem ao ofensor de que não aceita mais a situação de subordinação e subjugação. É o início do rompimento do ciclo de violência, com sinal claro por parte da vítima de que ela está buscando auxílio e proteção e uma mensagem para o ofensor de que há limites para a sua conduta violenta.
No contexto doméstico, a Lei Maria da Penha também pode ser usada para proteger filhos e outros familiares?
A Lei Maria da Penha é explícita no sentido de que as medidas protetivas de urgência podem abranger familiares e testemunhas dos fatos ocorridos. Há também previsão específica de concessão de alimentos provisórios e restrição ou suspensão de visitas a filhos menores, mesmo que não tenham sido vítimas diretas da violência, com previsão de atendimento por equipe multidisciplinar, abarcando não apenas a mulher.
Em conjunto com o Poder Público, qual o papel da sociedade na proteção da mulher?
A sociedade tem um papel de grande relevância na proteção da mulher, visto que a grande causa da violência está no machismo estruturante dessa mesma sociedade brasileira. As pessoas naturalizam a violência contra mulher e não observam que, no dia a dia, em pequenos atos, mulheres são vítimas de violência, discriminação e discursos de ódio apenas pelo fato de serem mulheres. É comum que meninas tenham tarefas domésticas diferenciadas de meninos numa mesma família; é comum que mulheres, mesmo em cargos de poder, sejam assediadas da forma que homens não são; é considerado “normal” que um homem sinta ciúmes de sua mulher e impeça determinadas condutas (é até entendido como “cuidado” e “proteção”); é comum que vítimas de violência sejam questionadas nas suas atitudes quando, na verdade, são vítimas. A questão é tão complexa e tão profundamente enraizada na sociedade brasileira, que levaremos décadas e décadas de desconstrução de rígidos estereótipos de gênero para formar uma sociedade mais equânime para homens e mulheres, sendo esse um dos grandes desafios para o desenvolvimento sustentável do planeta. É nossa grande responsabilidade, de toda sociedade, trabalharmos na educação de meninos e meninas, para que se compreendam como pessoas humanas dignas e que merecem e devem respeito entre si.
A violência física contra a mulher é a mais evidente e, portanto, a que ganha maior espaço nos noticiários. Mas a legislação também define como agressão a violência sexual, psicológica, patrimonial e moral. Dentre essas outras formas, quais são as mais recorrentes nas denúncias que chegam ao TJDFT?
De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública, as violências mais informadas nas ocorrências trazidas ao Judiciário são as violências psicológica e moral. Embora sejam menos visíveis, são as que causam maiores estragos na vida das vítimas. Nos juizados, é muito corriqueiro que as vítimas digam que agressões físicas não doeriam tanto quanto as constantes agressões psicológicas e morais, que minam sua autoestima e autodeterminação, impedindo-as de exercer livremente seus direitos da personalidade.
Na sua opinião, violência de gênero é uma particularidade da cultura brasileira?
A violência de gênero é um fenômeno mundial. Todavia, no Brasil e em países sul-americanos, essa forma de violência atinge níveis epidêmicos. O Brasil é o quinto país do mundo que mais mata suas mulheres. É uma estatística vergonhosa para o nosso país. A música, o cinema, as manifestações em rede sociais, as propagandas reforçam a ideia de “objetificação” da mulher, que não é vista como uma pessoa, mas como um objeto, um corpo a ser utilizado, consumido e, quando não serve mais, descartado. Pode parecer exagero, mais quando estudamos a respeito de criminologia e violência nos corpos das mulheres vítimas de feminicídio, observamos como os ofensores atacam as zonas do corpo feminino mais ligadas a feminilidade, como seios, ventre, áreas sexuais, rosto, sempre de uma forma a mostrar seu ódio ao corpo da mulher.
Ainda no contexto de gênero, a Lei Maria da Penha pode ser aplicada numa relação homoafetiva?
A Lei é explícita em dizer que as relações afetivas independem de orientação sexual. Assim, é possível que toda violência cometida contra a mulher, inclusive em uma relação homoafetiva, desde que marcada pela violência de gênero, seja protegida pela Lei Maria da Penha.
Apesar das inúmeras alterações legislativas relativas às mulheres, como a Lei Maria da Penha, Lei do Estupro e da importunação sexual e a Lei do Feminicídio, os números da violência contra a mulher continuam alarmantes. A que a senhora atribui isso: subnotificação anterior a essas normas, questões culturais/comportamentais, políticas públicas ineficazes ou outros motivos?
Acreditamos que tem sido dada maior visibilidade pelos meios de comunicação ao tema da violência contra as mulheres e também que havia subnotificação anterior. Atualmente, vários meios de comunicação têm produzido matérias jornalísticas mais aprofundadas a respeito do tema, sendo muito comum nas páginas de jornais histórias de mulheres que sofreram violência, que acionaram o sistema de justiça, que foram protegidas efetivamente e que conseguiram sair do ciclo de violência, o que estimula outras mulheres a procurarem auxílio.
Trata-se da crença na efetividade da lei, que faz com que mulheres antes submetidas a violência, caladas e silenciosas, venham a procurar ajuda. É importante destacar que, com a entrada em vigor da Lei 13.105/2015, que tipificou o crime de feminicídio, foi possível obter dados mais fidedignos a respeito das tentativas e das mortes violentas de mulheres. Antes, quando o crime envolvia a violência de gênero, as estatísticas baseavam-se apenas em uma qualificadora para o motivo fútil, torpe ou cruel, o que se misturava a tantas outras violências cometidas, impedindo que tivéssemos a real dimensão do problema.
A Lei Maria da Penha determina que o Poder Público deve desenvolver políticas que visem garantir os direitos das mulheres. Como o TJDFT vem cumprindo esta determinação?
O TJDFT criou em 2015 o Centro Judiciário da Mulher, hoje Núcleo Judiciário da Mulher – NJM, com atribuições definidas pela Resolução 254 do Conselho Nacional de Justiça. Em geral, tem como papel contribuir para o aprimoramento da estrutura e das políticas do Poder Judiciário no combate e prevenção à violência contra as mulheres. O NJM organiza e coordena a realização das semanas de esforço concentrado de julgamento de processos no Programa Nacional “Justiça pela Paz em Casa” (nos meses de março, agosto e novembro); promove articulação interna e externa do Poder Judiciário com outros órgãos governamentais e não-governamentais para a concretização dos programas de combate à violência doméstica, com participação em reuniões, seminários e audiências públicas, sempre no sentido de fortalecer parcerias; apoia a realização da Jornada Lei Maria da Penha e o Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica – FONAVID, entre outros. Há também o Núcleo de Assessoramento sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – NERAV, da Coordenadoria Psicossocial Judiciaria – COORPSI, que assessora os juizados com a realização de Grupos de Acolhimento e Avaliação, atendem vítimas e autores separadamente, realiza estudos psicossociais com as famílias envolvidas e participa das reuniões de rede e estudos de casos. Por meio de um acordo de cooperação técnica com a Polícia Militar do DF, há formação e aperfeiçoamento de praças, oficiais com disciplinas específicas sobre Lei Maria da Penha e violência de gênero, elaboração de conteúdo para os cursos, formação de tutores, oficinas e aulas presenciais, sendo esta a maior parte das ocorrências atendidas pela corporação. Os juizados os especializados de violência doméstica contam ainda com equipes de policiais com formação em violência de gênero treinados para lidar especificamente com situações de violência doméstica, fazendo visitas solidárias e acompanhamento de perto os casos mais graves de violência.
Além disso, hoje desenvolvemos diversas ações no Distrito Federal: projeto Maria da Penha vai à Escola, em parceria com outras 11 instituições do Distrito Federal, sobretudo a Secretaria de Educação, com a disponibilização de cursos sobre violência de gênero e, especificamente, violência sexual, palestras e formações para gestores, orientadores educacionais e equipe pedagógica, professores e alunos da rede pública de ensino. Atuando em quatro polos distintos, a equipe do NJM consegue atender a todos os juizados especializados de violência doméstica com encontros em grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica, em cinco encontros presenciais, trabalhando as questões que levam à violência, sobretudo a autorresponsabilização dos ofensores e a mudança de comportamento. Já o projeto Prata da Casa trata-se de uma formação para os servidores dos juizados especializados de violência doméstica com encontros no próprio juizado, para tratar de temas como violência de gênero, atendimento não revitimizador e comunicação não violenta, visando melhorar a prestação jurisdicional. O projeto Pavio, que se destina atender de forma mais profunda vítimas de violência, articula a rede de proteção e permite uma solução contextualizada que vai muito além da decisão judicial. E o Grupo Reflexivo para Homens autores de Violência Doméstica, que tem como objetivo sensibilizar e mobilizar os homens que respondem a processos da Lei Maria da Penha, combatendo todas as formas de violência contra as mulheres e evitando a reincidência.
Qual a melhor forma de combater e prevenir os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher?
Acreditamos que a melhor forma de combater seja através da denúncia ao sistema de justiça. As pesquisas evidenciam que a violência que as mulheres sofrem, em regra, tendem a aumentar ao longo do relacionamento numa espiral de conflito. Quando a mulher aciona o sistema de justiça, ela mostra para o ofensor o seu descontentamento e que ela vai buscar proteção, com vistas a colocar fim ao ciclo de violência. Muitas mulheres procuram o sistema, recebem a medida protetiva e depois de algum tempo, com as intervenções promovidas pelo sistema, como grupo reflexivo para homens ou grupo de empoderamento para mulheres, ou encaminhamentos à rede de saúde, essas mulheres querem voltar aos relacionamentos e elas informam em juízo que a situação melhorou muito e que já não são mais vítimas de violência. Portanto, procurar a justiça não significa, em última instância, que aquele casal vai ficar separado para sempre. O casal pode se reconciliar tempos depois, mas as partes estarão mais conscientizadas e com melhores condições de resolver seus conflitos sem uso de violência, mas na base do diálogo. É corriqueiro que homens, ao final do trabalho no grupo reflexivo de homens, digam que gostariam muito de ter recebido todas aquelas informações antes de dar início as violências ou que tais informações deveriam ser passadas para todas as pessoas, não apenas autores de violência.
Já a melhor forma de prevenção certamente está na educação, com a formação de meninas e meninos baseada em equidade de gênero, sem discriminações e vedações às meninas. As medidas judiciais são tomadas para evitar a ocorrência de violências mais graves ou letais, mas sempre para os casos de violência já cometidos. Para evitar que meninas e mulheres continuem sendo vítimas, precisamos que meninos e homens também participem da discussão e que busquemos novas formas de masculinidades, não focadas em agressividade, violência e negação a tudo que é feminino, como temos hoje.
Fonte: TJDFT